Epifania: a manifestação da Luz

O humano é um ser cavernoso. Platão afirmava que moramos no interior de uma caverna escura, mas eu afirmo que nós somos a própria caverna. Pois, entre as muitas imagens utilizadas para descrever o espírito humano, gostaria de acrescentar mais esta: a nossa personalidade se assemelha a uma imensa rede de cavernas, com galerias se ramificando em muitas direcções, com muitas câmaras desconhecidas, algumas muito profundas e de difícil acesso, uma boa parte delas permanecendo imersa na mais absoluta escuridão. Essa rede de cavernas que é a nossa personalidade e espírito humano não nasce pronta. Ela é construída ao longo da nossa vida sem nós nos darmos conta dessa realidade.

Algumas câmaras são de acesso imediato e bem iluminadas, pois se encontram bem junto à entrada principal: são os traços da nossa personalidade que são estimulados pelo grupo social a que pertencemos e pelas pessoas com quem nos relacionamos. Somos estimulados a sermos justos, compassivos, amorosos, educados, polidos, altruístas, ponderados, pacificados, fraternos. Cada um pode listar as suas preferências. Gostamos de exibir essas galerias para as pessoas que visitam a nossa vida: vejam como eu sou!

Mas, nos níveis abaixo e depois que cessa a luz que vem da entrada principal, começa a haver escuridão. São lugares onde raramente nos aventuramos. Temos medo do que podemos encontrar nessas câmaras: agressividade, ódio, rancores, egoísmo, pulsão de morte, inveja, soberba, ira, desejos inconfessáveis. Mais sensato é não se aventurar por elas. Entretanto, uma ou outra vez emergem vozes na superfície provenientes desses lugares escuros e desconhecidos e que nos causam um frio na barriga: afinal, também sou isso? E começamos a nos entristecer quando damos conta dessa realidade.

Entretanto, em algum momento da nossa vida, mais cedo para uns, tardiamente para outros, repentina ou mansamente, uma luz forte adentra nessas cavernas. A luz a tudo ilumina, percorrendo cada galeria, por mais recôndita que seja, exibindo aos nossos olhos o mapa da nossa geografia humana, revelando aquilo que somos na nossa totalidade.

Uma vez que tenha passado esse lampejo de luz, a escuridão volta aos lugares de costume. Mas, algo se passa em nós: perdemos o medo de nos aventurarmos e visitarmos esses lugares escuros que, agora, já não nos são mais estranhos.

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É assim a manifestação da graça de Deus na nossa vida. Por pura graça, somos um dia inundados pela luz de Deus, o Verbo Encarnado, “Luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina” (Jo 1,9). A graça nos revela aquilo que realmente somos no momento presente e nos introduz no caminho da compreensão de quem Deus verdadeiramente é.

A luz da graça nos desnuda diante de nós mesmos. Ficamos nus, como nossos primeiros pais no paraíso. Mas, diferentes deles, não nos sentimos envergonhados diante de Deus nem diante de nós mesmos. Pois, por mais difícil e doloroso que seja o contacto e a constatação desses lugares sombrios na nossa vida, é Deus mesmo quem nos toma pela mão e nos conduz através deles. E, no momento oportuno, vamos ter a possibilidade de descobrir: da câmara mais escura e sombria pode emergir a santidade, manifestação da presença santificadora de Deus na nossa vida.

E a Palavra se fez Poesia

Na introdução do seu Evangelho, João resume de maneira magistral um dos dois pólos da fé cristã, a Encarnação de Deus: “A Palavra se fez carne e veio habitar no meio de nós” (Jo 1,14).

O mistério da Encarnação de Deus celebrado no Natal pode ser apreendido correctamente, num primeiro momento, como o facto de que Deus assume um corpo humano. O nosso corpo é a expressão mais clara da nossa existência, é o centro de irradiação da nossa presença. É com o nosso corpo que nos relacionamos com as demais pessoas e criaturas, é com nossos braços que acolhemos as pessoas amadas e nos reconciliamos com quem nos feriu. É com o corpo que homem e mulher se juntam para gerar nova vida.

A Encarnação do Verbo num corpo humano, portanto, deita por terra certa compreensão da nossa corporeidade que vê o nosso corpo como obstáculo à santificação e à união divina, numa atitude esquizofrénica que proclama a ressurreição do corpo após a morte ao mesmo tempo em que busca a sua mortificação durante a vida presente.

Uma verdade fundamental expressa com a Encarnação da Palavra é simples: o corpo de que somos formados e a matéria onde nos inserimos são bons em si mesmos. Toda a matéria e toda a vida têm a sua origem nas relações amorosas da Comunidade Trinitária.

Entretanto, não podemos reduzir a Encarnação da Palavra Divina ao facto de que um corpo humano foi formado no seio de Maria para acolher a Palavra, por mais grandiosa que seja essa dimensão corpórea da Encarnação. Para podermos entender a profundidade e o sentido desta afirmação do Evangelista João - E a Palavra se fez carne e veio habitar no meio de nós -, poderíamos desenvolvê-la com algo parecido com o seguinte:

A Palavra se fez comunicação, se fez juras de amor entre os enamorados, se fez música e poesia, se fez dança e festa, se fez refeição e confraternização, se fez oração solitária e oração compartilhada, se fez comunhão de vida e união de corações.

A Palavra se fez mão samaritana para socorrer quem está caído, se fez abraço para acolher os pecadores, se fez encontros que curam e que libertam, se fez gestos de amor entre pais e filhos, entre marido e mulher e entre companheiros de caminhada.

A Palavra se fez jovem e idoso, se fez homem e mulher, se fez criança com Síndrome de Down e criança altista, se fez pai e se fez mãe. A Palavra se fez dor e enfermidade, se fez silêncio e solidão, se fez ira e agressividade, se fez sofrimento e morte.

Em resumo: tudo aquilo que é humano – o pecado fica de fora, pois ele é justamente o que nos desumaniza – foi assumido, santificado e plenificado pela Encarnação de Deus no ventre de Maria. O humano é querido e amado por Deus. Não há, portanto, caminho de salvação possível fora da nossa realidade humana. Apenas conhecendo, assumindo e amando a nossa própria realidade humana seremos capazes de trilhar o caminho de salvação inaugurado por Jesus, a Palavra feita humanidade.

Quem pensa que o caminho de santificação passa por uma fuga das nossas realidades humanas – por mais conflituosas que possam parecer – faz o caminho inverso daquele assumido por Jesus. Mas, também esses serão, um dia, iluminados em sua humanidade pelo Verbo, “Luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina” (Jo 1,9).
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